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Não fui enterrar meu camarada, justo ele, que vivia a desenterrar os mortos (Por Carpinteiro de Poesia)


Sempre lhe disse que sua sina era retirar do fundo o que fora soterrado, para que os antepassados, enfim, sejam sacralizados.
Meu camarada tinha orgulho de seus pais, da luta que eles travaram, e em cujas trincheiras, nasceu, e foi ele criado.
Meu camarada foi torturado ainda no útero da Mãe, e ouso dizer que passou a vida tentando superar esta agressão não apenas contra os corpos, seu e de sua mãe, mas contra a sua própria alma.
Ele sabia como ninguém fazer poesias com versos longos que mais pareciam narrativas épicas dos grandes guerreiros.
Ele foi um grande combatente, desses que sabe fazer o bom combate, bate, apanha, cai, levanta, sorri, segue em frente, aqui e ali, recolhendo e refazendo o que se dispersara pelo caminho.
Sua militância social era antes de tudo humana na dimensão que esta palavra nos lança, no exagero desta própria humanidade, nos seus próprios erros, nas suas próprias crenças, nas suas próprias formas de intensidades para as coisas ás quais se lançava como um louco a um abismo.
Meu camarada não tinha medo, nem de si próprio, nem de nada.
Não tinha medo da Polícia, não tinha medo de fascista, não tinha medo de pistoleiro, não tinha medo de fazendeiro, não tinha medo do crime organizado.
A estes todos ele enfrentava com esta força cósmica que o atravessara e fazia dele um lutador forjado na História da resistência contra todas as formas de opressão.
Uma vez escrevi um poema para o seu pai, com quem convivi, mas ele foi assassinado pelo conservadorismo e pelo atraso, a mando das máfias, e com o silêncio de um sistema judicial que fecha os olhos aos mais carentes e protege os desgraçados que praticam crimes contra a nossa Nação.
Meu camarada sabe que a sua luta e a sua consciência política e toda a sua experiência são agora exemplos dos mais jovens, mas não tão mais jovens do que ele, que jamais deixou de ser menino.
 Meu camarada era apaixonado pelo Araguaia, este campo sagrado.
Sua poesia era semente germinada desta terra.
Sua poesia atravessava os desertos e enfrentava os demônios.
Sua poesia era uma enxada, um ancinho, uma foice e um martelo.
Sua poesia era bela.
Sua poesia era bala.
Cada uma de suas palavras docemente pensadas e carinhosamente pronunciadas nos seduziam e nos encantavam.
Elas entravam em nossos ouvidos e logo construíam sonhos em nossas mentes.
Elas entravam em nossa carne e escreviam em nossos corpos tatuagens.
Elas circulavam nossas veias e nos deixavam ainda mais dentro de nosso verdadeiro Ser.
Que grande poeta era meu camarada.
Um poeta de guerras e de guerrilhas.
Um poeta de diálogos e de divergências.
Um poeta de esperanças.
Meu camarada entrou um dia em minha casa e perguntou o que eu estava a pensar e mal lhe revelei minhas ideias, ele súbito falou para as executarmos, juntos.
Meu camarada era um ser de palavra, e de ações.
Seu fazer era solidário, coletivo.
Por diversas vezes ficamos juntos em silêncio, por diversas vezes gritamos, por diversas vezes, conspiramos uma bela Revolução.
Imagino que seu coração devia ser muito grande para que ele o pudesse dividir com todos os que amara e não eram poucos.
Meu camarada era um ser que se doava num tempo em que ninguém dá mais nada para ninguém.
Meu camarada sofreu um infarto fulminante, consequência dos excessos das vidas pós-modernas.
Estava em leito de hospital, e de lá saiu para o Cemitério.
Mas eu não fui enterrar meu camarada, justo eu que sou um ser que gosta muito de Cemitérios.
Vá em paz, meu irmão.
Eu te Amo.
Sempre te amarei.

Texto © Carpinteiro de Poesia



Arte © Paulo Emmanoel
(Jornalistas Eduardo Reina e Kid Reis, e Paulo Fonteles Filho)

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