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#CONTO “A utopia literária nas margens de Sid Quaresma”

Quase ninguém mais se dedica à leitura, mas ninguém duvida que ela é importante no desenvolvimento cultural, a despeito da ignorância, e da brutalidade de nosso tempo.
A publicação de um livro, nesse sentido, é algo que se deve comemorar com alarde.
E quando este livro é inédito, então, nem se fala.
Por isso mesmo, o lançamento de “Nas margens”, ocorrerá entre os amigos mais próximos das inquietações existenciais e literárias do autor.
A obra é resultado da conquista do Prêmio Seiva, da Fundação Cultural do Pará (2017).
“Esse é um livro feito por mim, no calor de uma rotina apertada, pretendo também que seja representativo de uma geração, que se formou no compartilhamento de leituras, e ideias, galera subversiva, que ria dos donos de livrarias, pois mesmo não tendo nenhum dinheiro - a não ser o da cachaça ordinária - fez circular a fina-flor da literatura e da filosofia”, revela.
E o lugar de lançamento não poderia ser mais apropriado, a casa de sua mãe, na Passagem São Sebastião número 104, bairro da Pedreira, dia 12 de maio, a partir das 19H.
“Em honra ao conteúdo e ao título do livro, o evento ocorrerá nas margens urbanas, isto é, na periferia, no bairro da Pedreira, na casa de minha mãe, referências de vida e inspiração pra criar, e onde aprendi a amar a literatura, devorando por mil horas histórias clássicas e marginais”, esclarece.
Ao contrário de se proclamar escritor, entretanto, o autor, que é Pedagogo, mestre em educação, graduando em História, se considera “um arrimo de família, com inclinações literárias”.
Estas inclinações, segundo o ,professor/educador, surgem a partir de uma paixão – “pra não dizer fissura” – pela literatura de ficção.
“A minha labuta literária, não sei se feliz ou infelizmente, perde em proporcionalidade quando considerada a minha conduta esponsal, paternal e profissional”.
Casado com Carline Ramos, o autor tem duas filhas, Ana Karina, 8 anos, e Adely Cecília, de 12 anos.
Há nove anos, é coordenador pedagógico em projetos da Fundação Escola Bosque, com atuação, especialmente. na ilha de Cotijuba.
Originário de família cabocla e interiorana, Quaresma iniciou a vida na criação de ficção há cerca de quinze anos.
Naquele período, recorda o autor, as pessoas se reuniam para leituras coletivas.
“Em que pese os muitos desvios de finalidade – dionisíacos, vale dizer –, exercitei-me fartamente na criação de ficção, desde aqueles tempos”, admite.
“Não parei mais de escrever, embora sempre de modo intermitente, nos intervalos de minha rotina profissional de educador/professor e familiar”, explica.

SERVIÇO – Lançamento do livro “Nas Margens”, de Sid     Quaresma. Passagem São Sebastião número 104, Pedreira (Referências: Praça Eduardo Angelim ou Av. Dr. Freitas, em seu cruzamento com a Av Senador Lemos).  Dia 12 de Maio, Sábado, 19H






Erinaldo e os gatos 
© SID QUARESMA , in “NAS MARGENS”

     A desventura final da vida de Erinaldo iniciou há três anos mais ou menos, na terra natal que ele jamais voltaria a ver: a cidade de Codó, interior maranhense. Começou quando o desventurado passou a vista apressada pelos cantos do barraco à procura sabe-se lá de quê que não foi achado. Na verdade, Erinaldo não tinha nada pra levar mesmo, e só acabou levando, não na sacola, porém nas entranhas, os olhos doentes da mulher e das filhas, que naquele momento abandonava para sempre.
      Calça rota e sandálias de borracha, camisa puída, a magra sacola dependurada, o semblante de um vencido na vida, duro e triste: Erinaldo partia. Três passos adiante, ouviu a mulher gritar seu nome. Não quis voltar, ao contrário teve ímpetos de correr, não mais adiar a desgraçada separação inevitável. Entretanto, voltou.
      - Naldinho, leva contigo a Memé, tá parida, deu de seis, se elas ficar, se acaba... - Mariazinha chorava a sorte da gata, sem esquecer da sua.
      Erinaldo correu no quintal. Numa quina no fundo, sobre um berçário de folhas de buriti e panos de chão esmolambados, a gata Memé amamentava a cria. A bicha arfava de banda, enquanto os gatinhos meio às cegas chafurdavam em suas minguadas tetas de mãe sofrida. Uma camada de fluídos viscosos cobria a penugem dos seis gatinhos. E assim, juntos, úmidos, eles pareciam ter sido acesos naquele mesmo momento por uma frágil e piedosa chama de vida, tênue chama vacilante. Sugavam sofregamente as tetas pobres de Memé, ou gemiam moles miados lamentosos. Erinaldo, todo zeloso, com surpreendente carinho, sensibilizado pela própria situação, das piores, recolheu-os à sacola. Acreditou no bom augúrio de uma bondade derradeira. Necessitava sorte no empreendimento no sudeste do Pará, a mil e tantos quilômetros de casa. Memé e sua cria não dariam tanto trabalho quanto Mariazinha e as filhas. Os gatos cabiam na sacola. Seguiriam juntos para Parauapebas: Erinaldo e os gatos. 
      - Adeus Naldinho, nun te esquece de nós, manda a metade do que conseguir, manda que tu nos encontra quando voltar... Homem de Deus... - E Mariazinha chorou forte. Mas Erinaldo cruzava o portão. Pensava somente no conforto de Memé e suas crias no meio dos panos. Não importava se sujassem tudo: a sacola era só pra dizer, não usaria aqueles molambos em Parauapebas.

Passou o tempo. Erinaldo não teve notícia de Mariazinha e das filhas. Nem nunca mandara dinheiro, e embora tenha trabalhado de porteiro, entregador de jornais, pedreiro e gari, o que ganhava não chegava a dar para se manter. O maranhense era agitado por febres delirantes quando pensava na sorte dos seus em Codó. Logo começou a beber, a ter pensamentos antissociais, a desconfiar de todos os com que convivia e a descarregar suas fúrias e neuras no primeiro ser indefeso a cruzar seu caminho. Memé era a preferida pra esses excessos. 
      O migrante morava em Palmares, num barraco de um cômodo só, por cujo terreno empunhou terçados e criou a lenda de que era bicho doido em Codó. Memé, ainda sem fazer novas crias, estabelecera-se bem na quina nos fundos do quintal, sob a proteção temerária de um galinheiro em ruínas. Vivia sozinha, porém recebia visitas de felinos aventureiros. Os seis filhos não vicejaram. Suas tímidas chamas de vida não resistiram às brisas molhadas de um janeiro chuvoso em excesso. Três já chegaram mortos nas trouxas de Erinaldo. Um morreu no dia seguinte. Os outros dois até tentaram mamar, porém o líquido infecto sugado das tetas de Memé mais os abatia que acudia. Morreram seis dias depois. 
      Memé era tão tipicamente maranhense quanto Erinaldo. Ladina e estreita, magrela, desconfiada, com a discrição dos gatunos ladrões, olhar de fêmea corrupta, de bicho-cobra, maroto e pegajoso, passos silenciosos e arrastados. Tinha um malhado amarelo, principalmente nas costas e em parte da cabeça, porém as quatro pernas eram brancas, ou melhor, encardidas. Os bigodes curtos, de pelos grossos e longos, e os pelinhos úmidos em torno da boca, eram frágeis, ameaçavam cair e deixar, como em outras partes do corpo, feios vácuos nos quais, dum dia pro outro, as micoses pululavam. A cabeça de Memé era muito fina e triangular, lembrando uns selins estreitos de bicicletas, com olhos interesseiros e um miado enjoado parecendo gemido, o qual gemido era de fato, emitido nos apertos da fome permanente. Em Palmares, havia gente prometendo envenenar a gata ladra de Codó.
      O tempo continuou avançando. Agora Memé estava de barriga e Erinaldo, sempre embriagado, evitava pensar no destino das mulheres de sua vida. Nunca pudera, entretanto, fazer extinguir dentro de si os olhos das filhas e de Mariazinha, famintos e ressecados. Às vezes, triste e saudoso, exalando álcool, pegava a gata no colo, afagava o pelo encardido e depois botava as panelas no chão, oferecendo com profunda piedade o maior dos banquetes. A gata magrela, de barriga baixa e caída, a pele esticada permitindo entrever suas costelas arqueadas, fartava-se das salsichas, das sardinhas em lata, das costelas, do arroz e do feijão do maranhense. Porém, quando se enchia e se ia, balançando, preguiçosa, os quartos de baixo, sem um miado, sem esfregar-se nas pernas do dono, como quando a fome apertava os ossos, sem um reles olhar pro seu benfeitor, Erinaldo era tomado de aguda revolta contra tão displicente ingratidão. Por pouco não acossava a bicha com pontapés.
     Porém Memé não iria escapar. A porrada veio num dia ruim, quando a bichana, morta de fome, sentia o útero contrair-se anunciando pra logo a chegada da cria. Foi quando Erinaldo teve, enfim, a confirmação do destino das mulheres: Mariazinha se casara de novo, ficara em tamanha penúria que se viu obrigada a juntar-se com o vizinho pra não morrer de fome. As filhas, foi Erinaldo se ir e elas caírem no mundo, uma na prostituição, a outra se evadindo pra destino incerto, já mais de ano não dava notícia. Erinaldo encontrou, no meio da bebedeira, um fulano de Codó e sem perguntar nada, soubera de tudo. Quase dá na cara do sujeito, porém acabou mesmo apanhando, pois o sujeito, esse sim bicho doido, não só tinha fama de pistoleiro, como ousado pistoleiro, de fato, era, e viera para a região fazer a vida no ramo da bala. 
     Erinaldo, sangrando pelo supercílio, o nariz arrombado pela coronhada certeira do pistoleiro conterrâneo, deu um murro na porta do barraco, cheio de fúria e violência, como se batesse no próprio algoz. Como era tudo, claro, ilusão de bêbado, o alcoólatra sentiu no mesmo momento a embriaguez esvair-se completamente numa dor aguda de quem acaba de fraturar os ossos todos da mão. Chorou de dor, atravessado pela raiva mais exasperada que já existiu, o ódio em estado puro, sentimentos maus de quem acaba de encontrar fortes motivos pra dar cabo à vida de alguém ou à sua própria. Mariazinha já era, a única coisa nessa vida que podia chamar de seu, e também as filhas...
     E Erinaldo viu Memé no meio das panelas, a cabeça enfiada numa delas, mordendo as sobras do almoço, sobras que lhe serviriam de janta. Imediatamente pensou, arrasado pela crise de dor e de ódio, aliás, teve certeza, ser esse um procedimento recorrente, e ele, embriagado todos os dias, nunca se dera a perceber. Comera por tempos na mesma panela daquela gata vadia... Lembrou ainda, transido de dor, o dia derradeiro em Codó, quando foi resgatá-la no quintal e sentiu nisso o gosto da boa sorte. Qual nada! Agourava tudo, deixava longe toda boa ventura! Na verdade era tudo culpa daquela porcaria inútil. A gata, com os bigodes molhados de gordura, olhou escabreada pro semblante bizarro do companheiro, sacudiu a cabeça, e foi-se saindo devagar e desconfiada. Ele, porém, espumando ódio, avançou pra cima da bicha, e a instante dela ganhar o quintal, aplicou um violento pontapé no quarto traseiro. Ela miou forte e, toda torta, com contrações por dentro, num espasmo derradeiro, sumiu através da cerca do fundo.
       Corria com a língua pra fora, desesperada, e já expelia os líquidos e os sangues do parto. Atravessou o terreno cerrado, cruzou a rua piçarrenta dos fundos da casa de seu dono, meteu-se entre as cercas dos barracos de outros maranhenses e num caminhar tenso, contido pelas contrações do parto, adentrou uma construção abandonada. O berçário dos filhos de Memé foi o banheiro, uma futura privada na qual muito vieram a calhar pequenas moitas de capim trazidas por passarinhos cagões. 
       Memé partiu desse mundo ingrato antes do despontar da quinta e última de suas crias. Seu derradeiro suspiro deixou a caçula engatada entre o útero e a luz. Passava pela cabeça da bicha o semblante hediondo do dono. Este, melhor sorte não teve: poucas horas depois, no início da noite, jogara-se nos trilhos do trem que o trouxera para ali e fora destroçado pela fúria das muitas centenas de vagões, esfarelado a ponto de ser necessário recolher seus pedaços pro enterro.

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